Crédito: Zygmunt Bauman (1925-2017)
Zygmunt Bauman, um dos mais renomados teóricos do século 21, destacou-se com a criação da metáfora da liquidez, ocasião em que introduziu um conceito que simboliza uma nova forma de relação do indivíduo com seus iguais e que divide a vida pós-moderna em duas categorias: o mundo real e o virtual.
O autor polonês aprofunda ainda que as manifestações, relações e sentimentos humanos são líquidos porque não têm uma forma definida. É como se algumas práticas individuais e verdades fossem inconstantes ou temporárias e, portanto, dotadas de fluidez como um líquido. E essas particularidades estão inseridas em nossas instituições políticas e jurídicas do país, sobretudo nos últimos anos.
Assim, o profeta da pós-modernidade põe no centro das discussões a tecnologização que, aparentemente, proporciona felicidade e poder às pessoas, as quais constroem a sua identidade cultural e se realizam virtualmente, no emaranhado das redes sociais. E, nessa era da informação, Bauman pondera que a lentidão representa o atraso, a invisibilidade equivale à morte ou à exclusão social [1] e que os indivíduos vivem em plebiscito diário à base do on ou off [2].
E os recursos da informática impactaram bastante na política e na Justiça brasileira, tanto que muitas candidaturas e eleições de políticos nasceram e se mantêm pelo meio eletrônico, com direito à “lacração” nas redes para se manter em alta, prática que rende votos. No Judiciário, estamos assistindo ao avanço do juiz-robô e de decisões em massa, boa parte das quais no modelo do copia e cola, que não examinam, efetivamente, as teses levantadas pelas partes processuais.
Além disso, o mal líquido [3] está presente na vida contemporânea porque se apresenta de várias formas, como se vivêssemos, constantemente, sob campo minado, que reproduz medo e incertezas. Para Hannah Arendt, está havendo uma irritabilidade universal [4] entre os povos por conta da incompreensão e da insensatez humana, fato que dissemina o mal na humanidade.
E a ideia da filósofa alemã, remete-nos à teoria hobbesiana da guerra generalizada de todos contra todos, descrita em Leviatã [5], situação não distante da realidade brasileira, mesmo guardando as diferenças com os costumes do século 17, de maneira que, hodiernamente, assiste-se ao recrudescimento da violência, do ódio e da intolerância, bem como de práticas de selvagerias, como agressões e homicídios por razões banais ou desumanas.
Novo hábito político do século 21: a tecnopolítica
No final do século 19, Machado de Assis usou a sua obra Quincas Borba, numa conversa entre os personagens Doutor Camacho e Rubião, para tecer o conceito de política, levando em conta a sua complexidade, idolatria, inconfiabilidade e volubilidade, ocasião em ponderou o seguinte:
“política pode ser comparado à paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo; não falta nada, nem o discípulo que nega, nem o discípulo que vende. Coroa de espinhos, bofetadas, madeiro, e afinal morre-se na cruz das idéias, pregado pelos cravos da inveja, da calúnia e da ingratidão…” [6]
Enquanto Max Weber evidenciou a estreita relação entre política e Estado, defendendo que “por política, compreendemos aqui apenas a direção ou a influência exercida sobre a direção de uma associação política, portanto, hoje, de um Estado” [7]. Outro tema central na visão weberiana diz respeito ao critério econômico que distingue o viver “da política” e “para a política”, que no primeiro caso se refere a indivíduos que desenvolvem atividades e são remunerados no âmbito da política; enquanto na segunda categoria, as pessoas não necessitam de remuneração para atuar na política e, sim, são movidas pelo valor ou interesse pessoal, surgindo daí o homem político [8].
E a proposta debatida é explicada a partir do axioma aristotélico de que o homem é um ser político por natureza [9] e, vivendo em sociedade, é responsável pelos avanços, ou retrocessos, dos povos, mesmo considerando a pluralidade de culturas existentes no planeta e seus conceitos do que seja prosperidade, especialmente na evolução eletrônica.
Luís Roberto Barroso adentra na matéria observando o impacto da revolução tecnológica sobre a vida contemporânea, especialmente o poderio desempenhado pelas redes sociais, que modifica os hábitos pessoais e sociais [10]. Afilado com o pensamento baumaniano, Barroso enceta ainda que as plataformas tecnológicas, como facebook, instagram, youtube, whatsapp, twitter e tiktok, têm um peso importante no processo político-eleitoral, reconhecendo a influência do universo digital nas eleições dos Estados Unidos da América, Índia, Hungria e Brasil.
Nesse panorama, surgiu uma nova fórmula de fazer política nos tempos contemporâneos: a tecnopolítica, que dá votos, elege e mantém uma legião de eleitores digitais fidedignos, que seguem virtualmente os eleitos e refletem as suas atividades e ideias. Por igual, observa-se que a direita brasileira utiliza os recursos de informática com mais frequência e eficiência do que a ala esquerdista e contam ainda com o incentivo da monetização de postagens virtuais, embora o real problema é o volume massivo de desinformação e fake news.
Além disso, a massa populacional, destinatária das mensagens, não consegue discernir as armadilhas informacionais, no sentido de distinguir se a pessoa do outro lado da tela realmente defende a democracia, o funcionamento regular dos poderes constituídos e as necessidades básicas da coletividade, por isso fica refém de investidas dissimuladas.
E há outro elemento que ratifica a liquidez das instituições políticas e jurídicas do Brasil: a criação de um inimigo necessário, real ou imaginário, para justificar atos autoritários ou agressivos de determinado grupo político, assunto tratado na obra O Conceito do Político, de Carl Schmitt, que se refere como inimigo qualquer pessoa ou grupo social que possa, ideologicamente, ameaçar a homogeneidade de um Estado [11].
Segundo o professor Pedro Serrano, é reconhecidamente um método adotado pela extrema direita dos tempos atuais, cuja iniciativa se liquefaz no sistema contemporâneo, superando aquelas convicções tradicionais em face apenas do terrorismo e comunismo e, assim, pulverizando e criando outras opções inimigas, como o índio, o negro, o pobre periférico, as pessoas LGBTQIA+, os jornalistas e líderes políticos ou de movimentos sociais [12].
E um bom exemplo prático do inimigo comum foi dado pelo jornalista Márcio Chaer [13] quando lembrou que foi graças ao ex-presidente Bolsonaro, que se indispôs com o Legislativo e com o STF, levando o Congresso Nacional a legislar intensamente no âmbito de sua função institucional, freando os desmandos do Executivo, da mesma maneira que o mandatário uniu a suprema corte do país que, à época, encontrava-se em pé de guerra (Gilmar vs. Barroso e Fux), inclusive municiando juridicamente Alexandre de Moraes a conduzir com dureza o inquérito das fake news, que tem sua competência e legitimidade questionável.
E essa atmosfera ideológica impõe uma condição, politicamente, binária aos brasileiros: ou se é de esquerda ou de direita, de modo que os “neutros” ficam geralmente fora dos holofotes, ou invisíveis nas redes, ou mesmo odiados por ambos os lados porque críticos dos segmentos que polarizam o debate político.
Demais disso, a tecnologização da política trouxe ainda outros males sociais, como o linchamento virtual, a cultura do cancelamento e a miopia ética, praticadas digitalmente por uma tropa de sectários que desejam impor, a qualquer custo e referenciados pela sua própria régua moral, os usos e costumes para a sociedade em que vivem, inadmitindo a multiculturalidade, a diversidade jurídica e o pluralismo político.
Por essas razões, o autor da modernidade líquida [14] sugere que a tecnopolítica se coloca acima da política. É como se aquele político tradicional, nos moldes do prefeito demagogo Odorico Paraguaçu, satirizado por Dias Gomes [15], que costumava praticar o corpo a corpo em suas militâncias, necessariamente passasse a maquinar as suas malícias pelos meios eletrônicos em direção à numerosa população virtual, a fim de não cair no esquecimento e perder a popularidade desejada e, consequentemente, os votos imprescindíveis à (re)eleição.
Uma necessária discussão sobre a despolitização e legitimidade do Judiciário
O debate hodierno acerca da atuação da Justiça brasileira conduz ao enfrentamento de um ponto vespeiro, movediço, que não encontra unanimidade. E curioso é que, dependendo da direção em que os ventos políticos sopram, há sempre um agrupamento político que se alinha, circunstancialmente, ao Judiciário: não se pode ignorar que nos tempos lavajatistas, as decisões eram geralmente contrárias aos interesses da esquerda.
O ministro Gilmar Mendes, ainda que posteriormente representando uma voz de contrapeso em desfavor da lava jato, por isso odiado por punitivistas, chegou a criticar e digladiar com seus pares que defenderam as investigações da força-tarefa que, praticamente, aboliram o devido processo legal e outras garantias individuais. É dizer, o intérprete previu e combateu, em tempo hábil, a crise instalada no poder togado que, essencialmente, contribuiu para criminalizar a política e realizar perseguições seletivas.
E na dimensão considerada, Lenio Streck adverte, acertadamente, que o direito, o qual deveria nortear rigorosamente as pautas judiciais, está ficando de lado, abrindo cada vez mais espaço para a politização do terceiro poder da República [16], tornando inócua a sua função contramajoritária, razão maior de sua existência institucional, mormente no pós-Segunda Guerra Mundial, o que fragiliza a estabilização do Estado de Direito do país.
Por outra ótica, não se pode negar a atuação enérgica e providencial da cúpula judiciária em relação à tentativa de atos atentatórios ao Estado Democrático brasileiro, ocorrida no dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília, que sedia o poder central. Foi, decerto, o maior exemplo da eficiência e utilidade dos supremomagistrados nos últimos tempos.
Todavia, a apatia e omissão dos verdadeiros poderes políticos estão ensejando a continuidade do ativismo judicial, razão pela qual é imperiosa a presente discussão, realizada de forma corajosa e respeitosa, com a finalidade de acender uma luz que induza ao ajustamento institucional e o retorno à pacificação do país, pelo menos a níveis aceitáveis.
Em entrevista ao jornalista Luis Nassif, o juiz Casara propôs um freio de arrumação no andar de cima do Judiciário, com o fim de recolocar a justiça no caminho da “efetiva democracia, e não da democracia para poucos” [17]. Aliás, Kelsen defende que a vontade da maioria numérica nem sempre traduz o princípio da maioria representativa, vez que, desde a antiguidade, o sistema costuma utilizar a expressão no sentido de maior, de algo mais qualificado [18]. Ademais, uma maioria depende da existência de uma minoria que, se reprimida ao extremo, sucumbirá e não exercerá nenhuma influência no processo político, restando ausente um elemento fundamental: a liberdade de escolha.
E esta confusão institucional está sendo percebida e discutida em todos os segmentos da sociedade, o que posiciona o Judiciário como ator político no cenário nacional, chegando a compor o chamado judiciarismo de coalizão. Igualmente, em consequência da conjuntura instável dos poderes constituídos e da atual crise da República brasileira, multiplicam-se, no meio acadêmico e jornalístico, algumas expressões, como supremodemocracia, judicialização da política, politização do Judiciário e ativismo judicial.
Os professores da Universidade Federal do Ceará, Juliana Diniz Campos e Felipe Braga Albuquerque, em análise a novos parâmetros hermenêuticos que vêm transformando a teoria do direito e impactando o princípio da segurança jurídica, ponderam que foi necessária uma exegese dogmática inédita que conduzisse a uma ressignificação do papel institucional do poder Judiciário brasileiro, bem como a uma releitura de sua relação com os demais poderes da República, cuja teia está impregnada de conotação política [19].
Dessa forma, a Justiça brasileira precisa se demitir do encargo de necessária pacificadora ou de única solucionadora de questões eminentemente políticas, ou de assumir demandas que fujam de sua alçada jurisdicional, a fim de retomar a sua imagem de poder sério (que impõe respeito), imparcial e equidistante dos interesses contendores, compreendendo a atuação longe de holofotes e de decisões polêmicas e midiáticas.
Conclusão
À vista da atual estrutura republicana brasileira, provavelmente Ernst Fraenkel confirmaria, aqui, a sua teoria de um Estado Dual [20], observando a atuação dos operadores do direito e do funcionamento da justiça pátria, mesmo guardando diferenças com o Terceiro Reich (Alemanha nazista), porque há uma forte sensação de um Brasil-normativo, rígido na aplicação de leis em relação a algumas categorias de pessoas ou políticos, somado ao punitivismo e populismo penal, convivendo com outro Brasil-prerrogativa, sobretudo em relação ao próprio Judiciário, face ao qual a própria Lei Maior do país, praticamente, não previu mecanismos de contenção de seu poder supremo, ilustrando-se o caso de que um regimento interno prevalecer sobre uma lei.
E interpretando as ideias de Ingeborg Maus, o povo brasileiro tem que assimilar que a referência do superego da sociedade [21] deve ser ele próprio, porque detentor do poder, por isso com poder de exigir que as suas regras morais sejam aplicadas a todos, indistintamente, não permitindo que os julgadores e seus representantes políticos desnaturem a vontade popular, de forma a retomar o modelo político rousseauneano acerca da soberania absoluta do povo [22].
Por tudo isso, conclui-se pela relevância de se trazer a debate uma proposta reflexiva e propedêutica, à luz do pensamento baumaniano, de maneira a enfrentar o tema em discussão a partir de ideias que conduzam a um país estável, pautado na solidez do regime democrático e no respeito à competência das instituições republicanas, bem como nos conceitos de dignidade, igualdade, paz social, pluralismo político e solidariedade, tal como delineado na ordem constitucional vigente, que expressa a vontade do povo brasileiro.
– Este artigo acadêmico foi publicado integralmente na revista Derecho y Cambio Social
Fonte: Consultor Jurídico