Crédito: Vista de São Paulo a partir do Tatuapé, com destaque para o Platina 220, arranha-céu mais alto da metrópole. Créditos: Lucas Chiconi
As facetas da Política Urbana podem ser um caminho ao diálogo entre diferentes ideologias, além de uma maneira de restabelecer a confiança dos brasileiros na política e em sua própria sociedade
As eleições à Prefeitura de São Paulo ganharam o cenário nacional pelos piores motivos: a troca de ofensas de baixíssimo nível entre os candidatos, sobretudo motivadas por Pablo Marçal, o candidato do PRTB. É preciso dizer que, ainda que exista um monopólio do Sudeste nas pautas políticas, econômicas e culturais do Brasil, não é dispensável a eleição da prefeitura da maior metrópole nacional. A relevância é imensa para uma série de influências que São Paulo tem sobre o país e o mundo, assim como o intercâmbio em vários âmbitos com cidades e países mundo afora, sobretudo na América Latina. Portanto, é um surto que o nível dos debates seja tão baixo, cada vez mais, onde o que gera engajamento nas redes sociais sejam as polêmicas que em nada contribuem com a sociedade paulistana e suas demandas urgentes para combater a pobreza, os gargalos do transporte público, o saneamento básico, a habitação social, a poluição, a violência, a educação, a saúde e um desenvolvimento econômico que venha para combater desigualdades extremas.
No que condiz ao planejamento urbano e territorial, São Paulo é sempre uma referência, sobretudo pelo Plano Diretor aprovado na gestão de Fernando Haddad (PT), em 2014. Entretanto, a última década provou uma série de limitações e desencontros da política urbana, dado que os princípios da lei foram desvirtuados deliberadamente. Enquanto isso, municípios pequenos são assediados por propostas que pouco se ajustam às suas necessidades e realidades, sempre com uma visão de cima pra baixo que busca inferiorizar suas urbanidades, já que muitos entendem que esses não são uma São Paulo – quer dizer, se não é São Paulo, não é urbano o suficiente e devem focar somente no “ambiental”. Nem é necessário explicar o quão problemático é esse raciocínio.
Voltando à influência da metrópole na legislação urbanística do restante do país, deveria ser basilar que os candidatos estivessem contribuindo com a elevação do nível das discussões, onde pudessem estabelecer propostas concretas e que subam no conceito da população, ganhando sua confiança. O efeito causado por Pablo Marçal, infelizmente, fez despencar qualquer tentativa de discussões qualificadas a respeito da cidade, tanto entre os candidatos, quanto nas entrevistas por parte da imprensa. É muito fácil ser convencido pelas suas palavras em tom razoável, sobretudo a respeito de censura nas redes sociais. Vivemos tempos em que as redes sociais competem com o jornalismo tradicional e dão, ao mesmo tempo, voz e sensação de poder aos indivíduos mais distantes dos espaços de poder hegemônico. A meritocracia e o desejo de sucesso individual, pela expressão de ascensão por bens materiais como carros de luxo, imóveis em condomínios fechados e festas particulares, são uma forma de atenção, disputa e provações sociais. A violência na sua versão mais rasteira e cotidiana, como um roubo de carro, de celular ou de invasão a uma casa, faz o mercado da (in)segurança vibrar nos seus sistemas de vigilância, nos muros, cercas elétricas e qualquer elemento que demonstre defesa por parte das propriedades privadas.
A política tradicional e os espaços tidos como intelectuais precisam olhar para esses nichos da população e ouvir suas demandas e reivindicações. No dia 03 de setembro, teve início o III Seminário do Patrimônio Cultural Universitário, organizado pelo CPC/USP e realizado na Faculdade de Direito da USP, no Centro de São Paulo. Na ocasião, o professor Paulo Garcez, diretor do Museu do Ipiranga, deu exemplos brilhantes desse cenário ao falar da nossa crença em transformar as universidades em “Palácios de Versalhes”, como espaços de opulência e superioridade intelectual. Fez o convite ao público de ir ao Parque da Independência no próximo dia 07 de setembro, onde está o Museu do Ipiranga, para quem quiser ter uma experiência social bastante complexa para entender os motivos para que aproximadamente 200 mil pessoas visitem o parque no dia da Independência do Brasil.
Nessa direção, precisamos entender que existem grupos disputando os espaços de poder e representação social e política, sejam os museus, as universidades, as ruas, as prefeituras e as câmaras de vereadores. Na última segunda-feira, 2 de setembro, o programa Roda Viva da TV Cultura entrevistou o candidato Pablo Marçal. Em pleno segundo bloco, ficou evidente a desestabilização da bancada diante da comunicação praticada pelo candidato, que tenta simplificar questões complexas, que não têm respostas ou soluções fáceis. Uma das suas propostas mais polêmicas é a construção de um arranha-céu com 1.000 metros de altura, como marco de atração ao turismo internacional e em comparação com as empreitadas imobiliárias e financeiras de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Enfatizou que a construção acontecerá “sem gastar dinheiro público”, como uma prova de moral e integridade da sua campanha.
Afinal, será que sabemos para que serve o dinheiro público e onde ele deve ser investido? Não é óbvio que o dinheiro arrecadado dos impostos não seja destinado a um projeto imobiliário privado? Bom, talvez o óbvio precise ser dito, visto que os estudos e aprovações acerca da Política Urbana nem sempre estão nas mãos da população, sobretudo de trabalhadores que não têm tempo suficiente para acompanhar os debates políticos.
Nós que somos forasteiros (outsiders), temos que parar com a baixa autoestima que demanda uma autopromoção constante para recebermos aprovações da hegemonia, do status quo. É claro que, se ainda precisamos nos provar das mais diversas formas na sociedade, cultural e economicamente, para garantir que nos vejam como sujeitos decentes, capazes de prosperar, ascender socialmente e ocupar espaços de poder, é porque o sistema tradicional pouco se abriu para as diferenças e ainda trata as massas da população como seres exóticos.
A alternativa está na disrupção, no “quebra tudo” do sistema, seja na construção de monumentos de poder que impactam a paisagem urbana e alteram a direção dos investimentos, seja ao desorientar os jornalistas de um dos programas de entrevistas mais “tradicionais” do país. Penso que uma coisa é sermos capazes de produzir arranha céus e construções que expressam poder. Outra coisa é recorrermos a essas mega construções como muleta de aprovação social. O mesmo vale para o modus operandi de Pablo Marçal ao falar para nós forasteiros, sobretudo os que estão fora dos espaços tradicionais do sistema, como universidades públicas e outras instituições do Estado. Inclusive, o candidato não fala contrariamente ao Estado, mas na sua ausência nas periferias urbanas que demandam atenção prioritária em diferentes setores.
Contudo, não podemos abrir mão do que aprendemos nos últimos anos com o Bolsonarismo e a Extrema Direita, visto que Marçal está disputando a liderança desse espectro ideológico, ou seja, vamos aos territórios que mais deram votos ao ex-presidente Jair Bolsonaro em São Paulo: além de setores médios e altos dos centros urbanos do interior do estado, na metrópole paulistana ficou evidente a preferência desse espectro por antigas regiões suburbanas vinculadas à indústria do século XX, onde classes médias ascenderam e novas elites tomaram o protagonismo, caso do Tatuapé, Mooca, Santana e bairros similares nos municípios de Guarulhos, Osasco, São Caetano do Sul, Santo André, São Bernardo do Campo, entre outros. Quem fala e ouve esses estratos sociais nas suas variadas camadas, para além da exotização em torno dos “novos ricos” ou da “classe média que pensa ser elite”, corriqueiramente chamada de fascista. Para além das periferias, também são nessas regiões onde Marçal está buscando votos. O campo progressista vai sair da sua zona de conforto, em Pinheiros, ou vai finalmente disputar as classes médias?
É dessa complexidade que são feitas as classes médias e novas elites econômicas, sejam em antigos territórios operários e industriais da metrópole paulistana, seja nesse contexto em cidades médias e grandes do interior do estado de São Paulo, ou mesmo em centros urbanos de estados vizinhos que também estão inseridos nas dinâmicas econômicas e políticas do Agronegócio, caso de Ribeirão Preto, Goiânia e Rio Verde. Esses grupos sociais estão em uma condição híbrida entre espaços e dinâmicas públicas e privadas, entre origens pobres e mais privilegiadas, o que faz com que as periferias apareçam com frequência e por variados interesses na disputa por seus votos, nos mais variados partidos eleitorais e ideologias políticas.
Nessa eleição, bairros da Zona Sul ganharam protagonismo pelas origens e/ou residências de muitos candidatos, assim como urgências socioambientais, caso da poluição e evidente ocupação das margens das represas Billings e Guarapiranga. Um dos pontos mais quentes nos debates está na atuação do crime organizado na implantação de loteamentos clandestinos nos mananciais. Mais uma vez, não podemos fragmentar a história da cidade e achar que as propostas e ações de uma gestão municipal são individualizadas. O processo de criação das centralidades financeiras da Faria Lima e da Berrini estão na receita de bolo que contribuiu para a expulsão dos mais pobres, colocando não só a população em risco de vida em condições precárias, mas também induziu ao aumento de contaminação das águas das represas que abastecem parte considerável da metrópole. Não é segredo a atuação do crime organizado nos loteamentos precários, com a conivência de gestões municipais que acabam endossando ou sobrevivendo a relações promíscuas com o poder paralelo.
Não podemos, em hipótese alguma, normalizar o crime organizado e a violência em geral. Aliás, se tem algo que os brasileiros estão fartos é da banalização da violência em que vivemos em todo o país. Mas isso não pode ser motivo para evitarmos o assunto e buscarmos soluções simplistas que servem apenas para evitar o problema, incentivando a negação da cidade por condomínios fechados e sistemas rígidos de segurança particular. É necessário provar para as pessoas que elas não sobrevivem sem Estado e dinheiro público, que as relações de bairro, a infraestrutura de transporte, o combate à violência e a contaminação do ar pela fumaça das queimadas são questões de interesse público e nos interessa. Mas, como?
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil