O que a população brasileira viu, estarrecida, durante o feriado de carnaval no litoral norte de São Paulo nos fez revisitar outras tragédias, que a rotina apaga dias após ocorridas, mas que deixam marcas por anos a fio. Mas, mais do que as tragédias por piores que tenham sido, alguns elementos novos emergem e nos convocam para um novo olhar sobre estes eventos climáticos extremos.
Sabemos que os eventos climáticos extremos têm se tornado mais frequentes, não temos dúvidas disso. Eles se multiplicaram por cinco nos últimos 50 anos, segundo a Organização Meteorológica Mundial. Para quem, como eu, cuja memória dos últimos 50 anos ainda é um quadro de paletas muito nítidas, fica impossível não correlacionar o aumento de eventos climáticos extremos com as ações humanas. Ou a falta delas.
Nossa visão tradicional é a de associar estes eventos às mudanças climáticas e ao terror que elas representam. A primeira reação das autoridades e das lideranças da sociedade é a de reparação imediata e urgente dos danos causados. A tragédia humanitária e a necessidade urgente de assistir às vítimas, por mais legítima que seja, nos cega para uma outra realidade: os ecossistemas originais enfraquecidos em sua resiliência pela ação do homem não conseguem mais absorver os impactos extremos das chuvas torrenciais.
Em condição mais preservada, esses ecossistemas permitem a absorção de 200 a 500 milímetros de chuva em um período de um dia, mas não resistem a quase 1000 milímetros em um período de horas. Portanto, não se trata apenas de mitigar a ação do homem, mas também de se pensar em soluções ecossistêmicas que aumentem a resiliência da própria natureza em relação às alterações que a crise climática vem produzindo de forma crescente.
O novo desafio não é apenas reduzir o impacto humano sobre o ecossistema nos territórios vulneráveis e regenerá-los. O desafio é: como regenerá-los? Me refiro a como usar a melhor ciência para aumentar a resiliência aos impactos extremos utilizando-se de soluções baseadas na natureza para que se perenizem e permitam um fortalecimento exponencial nos territórios vulneráveis.
As “soluções cinzas” podem parecer adequadas às emergências. Piscinões, muros de gravidade, grampeamento do solo, cortinas atarantadas, retaludamento e outras técnicas de engenharia são importantes e não devem ser descartadas. No entanto, elas carregam os custos indiretos de não serem perenes e não se ajustarem sistemicamente às mudanças abruptas do território. Há, portanto, que se pensar em soluções baseadas na natureza por terem uma propriedade inerente à sustentabilidade: se ajustam na medida das alterações permitindo uma maior absorção dos impactos e são menos vulneráveis à destruição sistêmica.
Em conversa com o professor e cientista Rinaldo Calheiros, doutor em Agronomia e Sistemas de Irrigação e Drenagem, pude vislumbrar novas abordagens baseadas na melhor ciência que não só podem complementar as soluções cinzas, como superá-las em muitos casos. A questão hídrica, só para nos limitarmos aos grandes flagelos recentes, precisa levar em consideração níveis de abundância e escassez jamais vistos. Trombas d’água que se precipitam à razão de quase uma tonelada sobre o m2 do território em poucas horas ou estiagens que duram anos são um desafio novo e precisam ser enfrentados com o que há de mais avançado na ciência. E a ciência tem avançado muito nesta área também.
Segundo o professor Calheiros, intervenções para proteger, gerenciar de forma sustentável ou restaurar ecossistemas naturais, que utilizam a natureza para o enfrentamento de desafios climáticos, englobam os conceitos de Infraestrutura Verde, Técnicas Compensatórias, Desenvolvimento de Baixo Impacto, Melhores Práticas de Manejo, entre outros. Estas novas técnicas, por sua abordagem sistêmica, deram origem ao desenvolvimento de uma metodologia para produção de água que, por um lado mitiga os efeitos da estiagem e, por outro, considera a maior absorção, percolagem, reserva subterrânea e manejo florestal para diminuir e ajudar a neutralizar os efeitos do excesso de precipitação.
Esta metodologia, detalhada em seu livro, Fundamentos Sobre a Produção de Água, permite uma abordagem contemporânea, inovadora e totalmente em linha com as recomendações das Nações Unidas sobre o uso de NBS (Natural Based Solutions). As soluções verdes ou sustentáveis, e toda a ciência que lhe dá suporte, são um dos capítulos mais fascinantes de nosso tempo, permitindo uma nova fase em nosso avanço civilizatório.
Afinal, como a Biomimética já nos ensina há tempos, quando os primeiros espécimes do Homo Sapiens surgiram, há cerca de 200 mil anos, a natureza já estava encontrando soluções evolutivas e sustentáveis para a vida no planeta há milhões de anos. É razoável se pensar que, enquanto as soluções cinzas são resultado de alguns poucos séculos de engenharia, soluções verdadeiramente baseadas na natureza prometem descortinar novas fronteiras para a mitigação e adaptação ao pesadelo das mudanças climáticas.
Ricardo Young é socioambientalista, presidente do Conselho do Instituto Ethos e do Instituto Democracia e Sustentabilidade, membro do GT Cidades Sustentáveis, integrante do Grupo Estratégico da Coalização Brasil Clima, Florestas e Agricultura, fundador do Movimento Nossa São Paulo, do Fórum Amazônia Sustentável e dos conselhos da Synergia Socioambiental e do Todos pela Educação