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Desfinanciamento federal do SUS e o impacto nas finanças municipais

Neste momento de pandemia de Covid-19, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido amplamente defendido e valorizado publicamente pela população. Mais do que garantir o direito ao atendimento gratuito à saúde e coordenar o programa nacional de imunização, estamos falando de uma política pública que é referência mundial. Trata-se do maior sistema de saúde do mundo com mais de 200 milhões de habitantes com acesso gratuito a diversos tratamentos e serviços de saúde. Mas, quanto custa esse sistema?

De acordo com dados do Siops (2019), o SUS custou 303,3 bilhões, sendo os percentuais de financiamento assim subdivididos: 42% no orçamento da união, 26% dos estados e 32% dos municípios. Estamos falando de 1,4 mil reais per capita Brasil por ano e 3,97 reais por dia. Em termos internacionais, o valor desse gasto público consolidado em saúde no Brasil é muito mais baixo do que outros países ou dos planos privados.[1]

A título de comparação, o Brasil aplicou somente 3,8% do PIB com a rede pública de saúde, sendo que sistemas universais como Canadá, Espanha e Reino Unido investiram, respectivamente, 7,7%, 6,5% e 7,9% do PIB em 2015 segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS).[2] Não bastasse o subfinanciamento de um sistema do porte do SUS em perspectiva comparada, o professor Áquilas Mendes destaca ainda que o percentual do gasto do Ministério da Saúde em relação ao PIB está em torno de 1,7% do PIB desde 1995.[3]

Após 12 anos da promulgação da Constituição Federal, marcados pela instabilidade no processo de financiamento do SUS[4], a Emenda Constitucional 29/2000 consagrou como direito pisos obrigatórios, sendo para o governo federal o valor empenhado no ano anterior mais variação nominal do PIB; para estados e municípios, respectivamente, 12% e 15% de suas receitas de impostos e transferências de impostos.

A revisão prevista para ocorrer no prazo de cinco anos foi regulamentada somente em 2012, pela Lei Complementar 141, que manteve essas regras de cálculo dos pisos, mas inovou ao definir o que são e o que não despesas com ações e serviços públicos de saúde para o cômputo desses pisos.

Mas, a partir de 2015, duas Emendas Constitucionais – a 86 de 2015 e a 95 de 2016 – alteraram a regra de cálculo do piso federal do SUS: a primeira estabelecendo 15% da Receita Corrente Líquida da União (além da inclusão para o cômputo desse piso das despesas correspondentes a 0,6% da receita corrente líquida das emendas parlamentares individuais e da perda da condição de aplicação adicional ao piso da partilha da receita dos royalties do pré-sal); e a segunda congelando o piso por 20 anos pelo valor dessa regra aplicada para o ano de 2017, essa última trazendo redução da aplicação federal em ações e serviços públicos de saúde, como constatado posteriormente.

O que ocorre na prática é que os estados e, principalmente, os municípios investem mais do que o mínimo. Conforme estudo de Funcia e Bresciani[5], os municípios, cujo piso é de 15% da receita, gastaram em média cerca de 24% em 2016 e 2017.

O impacto do aumento da participação dos entes subnacionais no financiamento da saúde foi sentido principalmente a partir da promulgação da Emenda Constitucional de teto dos gastos (EC 95/2016) que limitou os gastos públicos por 20 anos, ou seja, até 2036, ao valor de 2016 e, no caso da saúde e educação, aliou esse teto ao piso fixado no valor de 2017 corrigido apenas pela inflação.

Especialistas têm denominado esse efeito de “desfinanciamento da saúde”, considerando as seguintes análises:

  1. Houve queda no valor do piso per capita de R$ 565,00 para R$ 558,00 e no valor da despesa empenhada per capita de R$ 594,00 para R$ 583,00 no período 2017-2019, calculado a preços de 2019;[6]
  2. A regra geral do teto de despesas primárias, na prática, limita as possibilidades de aplicação em saúde acima do piso à queda de gastos em outras áreas, o que transforma o piso em teto;
  3. A exceção dessa condição ocorreu inicialmente em 2020, quando a abertura de créditos extraordinários para o enfrentamento da Covid-19 flexibilizou o cumprimento do teto geral das despesas primárias; porém, se forem deduzidas as despesas para enfrentamento da Covid-19 da aplicação em saúde, nem o valor do piso federal do SUS teria sido atingido em 2020, ou seja, ocorreu nova queda da aplicação federal per capita;[7]
  4. A exceção foi novamente mantida para 2021, com o agravamento da Covid-19, mas, para isso, o governo federal optou por considerar como “imprevistas” as despesas para ações de enfrentamento da Covid-19 e, desta forma, está alocando recursos orçamentários por meio de abertura de créditos extraordinários que não são computados no teto das despesas primárias.

Desde a promulgação da Emenda do “Teto dos Gastos” a participação da união no financiamento do SUS vem se reduzindo: em 2017 era de 43,2% e, em 2019, foi para 42%. Em 2017 os estados contribuíam com 25,7% e em 2019 aumentaram a participação em 0,8 pontos percentuais, fechando em 26,5%. Já os municípios passaram de 31,1% para 31,5% – um aumento de 0,4 pontos percentuais.[8]

Convém lembrar que do total da carga tributária do Brasil de 31,6% do PIB em 2020, 21% ficou com o Governo Federal, 8,5% com os estados e, apenas, 2,1% com os municípios (STN, 2021). Sendo assim, o “desfinanciamento” do SUS pelo Governo Federal tem enorme impacto sobre a saúde fiscal e a capacidade de ampliar investimentos em outras áreas de estados e, principalmente, municípios considerando sua baixa participação no bolo da arrecadação tributária. Portanto, considerando a necessidade de ampliação dos gastos públicos em saúde no Brasil para se aproximar da aplicação em outros países, caberia ao governo federal aumentar sua participação no financiamento do SUS.

Em 2020, com a deflagração da pandemia de Covid-19 e a consequente pressão por gastos de diversas ordens em decorrência de políticas de assistência à saúde e políticas sociais, a situação de desfinanciamento federal da saúde ficou ainda mais crítica. Foram editadas 40 medidas provisórias que disponibilizaram 673,5 bilhões em crédito extraordinários para o combate à pandemia, mas a saúde ficou com menos de 10% desse valor (R$ 63,7 bilhões, conforme Boletim Cofin/CNS 2020-12-31), dos quais R$ 21,6 bilhões destinados exclusivamente para vacina não foram utilizados em 2020 e transferidos (créditos orçamentários reabertos) em 2021.

Mesmo diante dessa participação do governo federal, os entes subnacionais tiveram que ampliar sobremaneira suas participações no financiamento de suas políticas de saúde, diante da lentidão e irregularidade das transferências do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais e Municipais de Saúde.[9]

O impacto dessa situação de desfinanciamento federal do SUS para os estados e municípios pode ser muito bem ilustrada com a redução de recursos transferidos para esses entes da Federação para o financiamento das ações e
serviços de saúde para o enfrentamento da Covid-19 no primeiro quadrimestre de 2021 em relação ao 3º quadrimestre de 2020 – respectivamente, menos 17% e menos 63%.[10]

A Lei Orçamentária Anual da União deste ano foi considerada por muitos analistas uma peça de ficção, uma vez que não incluiu nenhum centavo para as despesas necessárias para o enfrentamento da pandemia de Covid-19, nem mesmo no Ministério da Saúde. Mesmo diante dessa negligência, a realidade se impõe para os entes municipais. Municípios recebem demandas de toda sorte de uma população penalizada pelos efeitos da pandemia e que sofre os efeitos do descaso e da falta de governabilidade necessária para o enfrentamento desta grave crise sanitária.

A CPI tem revelado detalhes da omissão na conduta do governo federal para administrar a crise. O desfinanciamento do SUS ao longo dos anos e a falta de priorização para viabilizar recursos para o SUS, especialmente aos estados e municípios nesse contexto de crise aguda, reforçam a negligência e o descaso com a manutenção do maior sistema público de saúde do mundo e o mais fundamental de todos os direitos: direito à vida.



Marilia Ortiz, Gestora de Políticas Públicas (USP- EACH) e Mestre em Administração Pública e Governo (FGVEAESP)
e Secretária de Fazenda de Niterói.

Francisco Funcia, Economista e Mestre em Economia Política (PUC-SP), Professor dos Cursos de Economia e Medicina e Doutorando em Administração na USCS, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e Secretário de Finanças de Diadema.


Fonte: Artigo publicado no Estadão em 17 de agosto de 2021.

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