Antigas pavimentações urbanas devem ser preservadas como patrimônio cultural

Fato que tem ocorrido cada vez com maior frequência no Brasil, lamentavelmente, é a desnecessária e arbitrária substituição ou recobrimento de antigas pavimentações artesanais das ruas de nossas cidades, normalmente implantadas entre os séculos 18 e 20, por negras camadas de asfalto que, sob a ilusória sensação de modernidade e progresso, homogeneizar a paisagem primitivamente pitoresca de nossas urbes, descaracterizam a ambiência do sítio, violam as heranças do passado e agravam os problemas ambientais.

Nas cidades, não apenas as edificações arquitetônicas (como casas, prédios comerciais, igrejas, edifícios públicos etc.) e monumentos (fontes, chafarizes, obeliscos etc.) compõem o cenário dos assentamentos, que também é integrado pelas ruas, becos, travessas e avenidas que são como veias que percorrem e irrigam o locus vivendi dos seres humanos, permitindo o deslocamento de pessoas, de mercadorias, de veículos, bem como a comunicação e trocas culturais. Com efeito, as cidades, enquanto expressão cultural socialmente fabricada, não são eliminatórias, mas somatórias [1].

Por necessidade de maior comodidade, segurança e conforto e a fim de evitar os transtornos que acometem os antigos núcleos urbanos, cujas vias eram, de início, de terra batida, aos poucos foram sendo implantadas pavimentações nos principais logradouros, com o fito de diminuir a poeira, o barro e os buracos.

A principal matéria-prima utilizada para promover o calçamento das ruas era a pedra, colhida em forma de blocos ou lajes nos afloramentos rochosos ou no leito dos rios (seixos rolados). As técnicas de utilização variam desde o assentamento direto das lajes ou blocos de pedra com face aplainada sobre o solo, passando pelo aparelhamento de blocos em forma de cubo (paralelepípedo) e pelo uso de seixos rolados assentados de forma contígua (pé de moleque).

Associados à execução dessas tarefas estavam conhecimentos técnicos tradicionais detidos por antigos profissionais pedreiros, aparelhados e calceteiros cujas origens remontam aos primórdios da humanidade [2].

Os desenhos dos calçamentos dos antigos núcleos tinham, em geral, uma “espinha central” que funcionava como canaleta de escoamento da água pluvial ao centro, que era mais profundo, o que contribui para proteger as paredes das edificações da umidade.

Em Minas Gerais, onde esse tipo de pavimentação foi largamente utilizado, na segunda metade do século 19 o governo da província empreendeu esforços para que fosse implantada uma faixa de lajes de pedra plana no centro das ruas das principais povoações. Essa faixa linear, ou passarela, normalmente ladeada por blocos menos regulares ou seixos, objetivava a circulação de pessoas com maior comodidade, rapidez e segurança, constituindo-se, quiçá, uma das mais antigas medidas de acessibilidade e mobilidade urbana do país.

Tal estrutura de pavimentação, por ter sido implantada durante a gestão do governador João Capistrano Bandeira de Mello, acabou recebendo o apelido de “capistrana” e assim é conhecida até os dias de hoje, sobretudo na cidade de Diamantina, onde antigamente a expressão “fazer a capistrana” significava o passeio que os jovens empreendiam aos finais de semana em busca de namorados, desfilando pelas velhas lajes de pedra.

Contudo, como assevera no intróito, cada vez mais as administrações públicas municipais de nosso país vem recobrindo ou substituindo, sem fundamentação técnica ou demonstração de necessidade fática, essas antigas e singulares pavimentações, o que, na maioria das vezes, implica verdadeiro atentado contra o patrimônio cultural brasileiro, pois elas constituem, a princípio, bens materiais representativos da identidade, da memória e da forma de fazer de nossos antepassados, razão pela qual recebem a especial tutela conferida pela Constituição Federal de 1988, sobretudo em seus artigos 23, III e IV e 216.

Para além da tutela constitucional, vale ainda destacar que, no âmbito da política urbana municipal, é diretriz de observância obrigatória pelos municípios, segundo previsto no artigo 2º, XII, do Estatuto da Cidade (norma nacional que vincula os administradores públicos), a “proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico”.

Pelo exposto, decisões acerca do assunto não se acobertam pela inexistente discricionariedade dos gestores em tal matéria, havendo necessidade de fundamentação idônea e busca pela efetivação dos mandamentos acima citados em um contexto de harmonia, equilíbrio e busca pelo interesse coletivo.

Em razão de seu especial significado e valor, as antigas pavimentações de nossas cidades podem receber especial tutela por parte do poder público por meio de vários instrumentos específicos, a exemplo da própria legislação urbanística local (que proíba, por exemplo, a sua substituição ou recobrimento), pelo inventário e pelo tombamento.

Outra medida importante na seara de preservação da dimensão imaterial associada a tal tipo de bem cultural é o registro, a valorização e a adoção de medidas de salvaguarda relacionadas às formas de fazer dos antigos pedreiros, aparelhados e calceteiros que ainda são detentores de tais saberes que, como já assinalado, remontam aos primórdios da civilização.

Não se pode deixar de destacar que, para além do aspecto cultural, as antigas pavimentações também contribuem de forma positiva para o meio ambiente natural e possuem enormes vantagens sobre o concreto betuminoso usinado, o popular asfalto. Com efeito, os calçamentos artesanais contribuem para a maior permeabilidade do solo e recarga de aquíferos; diminuem a velocidade das águas em tempos de chuva, facilitando ações de drenagem pluvial; retêm menos calor e harmonizam-se facilmente com a paisagem urbana, gerando maior segurança para o trânsito de veículos automotores, inclusive.

Fato marcante sobre o tema no cenário jurídico nacional foi a ditosa decisão do Tribunal Federal da 5ª Região ao julgar, em grau de recurso, ação civil pública proposta em face do prefeito e do município de São Cristóvão (SE), visando ao desfazimento de pavimento novo implantado em um dos logradouros públicos daquela histórica cidade, cuja pavimentação antiga integrava conjunto urbanístico tombado pelo Iphan.

Eis a ementa do acórdão:

“As cidades tombadas como ‘Monumento Histórico’ têm sob proteção do Poder Público, não somente os seus templos e edifícios, mas também tudo aquilo que diga respeito à paisagem natural, como morros, rios, lagos e bosques, etc., seja a paisagem artificial, como é o caso de postes de iluminação, calçadas e pavimentos de logradouros públicos. O órgão da Administração que danifica o conjunto arquitetônico ou sua paisagem está obrigado a repô-lo no estado original, e, a autoridade administrativa que ordenou o dano, está obrigada a indenizá-lo nos termos do artigo 17, parágrafo único do Decreto-Lei nº 25/37. Apelação e remessa oficial, tida como interposta, providas. (TRF. 5ª. R. —AC 106.419 — (96.b05.27061 — 7) — SE — 1ª T. — Rel. Juiz Castro Meira — DJU 28.12.1998 — p.53)”.

Do corpo da decisão extrai-se o seguinte aresto, que merece transcrição:

“Imagine-se, por exemplo, um prefeito de Roma que quisesse destruir a colina do capitólio para, aplainando-a, em seu lugar construir uma moderna praça, ou, então, um prefeito de Veneza que decidisse aterrar todos os canais da cidade, não somente por ‘questões de higiene’ como também para abrir ‘modernas ruas e avenidas’ por onde possam trafegar automóveis no lugar das ‘antiquadas gôndolas’…

Infelizmente, a consciência que existe nos países mais desenvolvidos a respeito da importância cultural do seu patrimônio histórico e artístico, só muito lentamente vai conseguindo se firmar entre nós. Ressalte-se que a importância de ordem cultural que tem referido patrimônio é também correspondida por uma enorme importância de natureza econômica, visto como dão especial incentivo à indústria do turismo, chegando mesmo a serem a principal atração de diversos lugares famosos. A referida indústria é hoje uma das principais atividades econômicas no mundo, havendo cidades, como o caso da já mencionada cidade de Veneza, que vivem exclusivamente da exploração do turismo.

Não obstante, o prefeito do Município de São Cristóvão, que mais do que ninguém tinha o dever de proteger a excepcional condição de monumento histórico que possui a sua cidade, foi absolutamente insensível a tudo isto, inclusive ao que expressamente determina a lei, e destruiu parte dessa condição, visando à obtenção de popularidade junto a moradores menos esclarecidos, através de uma obra que substitui o velho pavimento por um pavimento pretensiosamente moderno e mais confortável para aqueles que são possuidores de automóveis. Entre a defesa do Patrimônio Histórico e a popularidade fácil, preferiu esta última”.

Em data mais recente, o TJ-MG assim decidiu sobre fato envolvendo a tentativa de asfaltamento das ruas calçadas com paralelepípedos na cidade de Ouro Fino:

“Constitucional. Administrativo. Ação civil pública. Patrimônio cultural. Bens não tombados. Proteção. Via adequada. Calçamento artesanal e histórico. Inventário. — A ação civil pública é via adequada de proteção de patrimônio cultural representado por bens ainda não tombados. — Deve-se julgar procedente a ação civil pública que visa garantir a proteção e a manutenção de calçamento artesanal e histórico considerado patrimônio cultural municipal e estadual, por meio de inventário, cuja importância foi reconhecida pelo Conselho Municipal e pelo IEPHA/MG. (TJMG — Apelação Cível 1.0460.02.008976-5/001, Relator(a): Des.(a) Alberto Vilas Boas , 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 17/2/2009, publicação da sumula em 13/3/2009)”.

Vale destacar que não se exige o prévio tombamento ou qualquer outra forma de proteção administrativa para se combater, pela via judicial, seja por ação civil pública ou ação popular, as condutas administrativas que violam o dever de preservar as antigas pavimentações de nossas cidades, pois, como já tivemos a oportunidade de salientar, ao “Poder Judiciário, a quem incumbe, por força de preceito constitucional, apreciar toda e qualquer lesão ou ameaça a direito, também é dada a tarefa de dizer o valor cultural de determinado bem e de ditar regras de observância obrigatória, no sentido de sua preservação ante a omissão de seu proprietário ou do Poder Público” [3].

Enfim, o caminhar rumo ao progresso e à modernidade não necessita e nem recomenda o desfazimento arbitrário e desmotivado das velhas pavimentações executadas em nossas cidades por aqueles que nos precederam.

Por Marcos Paulo de Souza Miranda

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