Os Programas Municipais de Transferência de Renda se espalharam rapidamente e globalmente nos anos de 2020 e 2021, acelerados por iniciativas de governos municipais interessados em dar uma resposta à crise da Covid-19. Ancorados nas políticas bem-sucedidas de transferências condicionadas de renda que demonstraram impacto positivo no combate à pobreza desde a década de 1990 e na onda de Renda Básica Universal que emergiu na última década, essas iniciativas municipais representam uma nova geração de programas de transferência de renda, caracterizados pela incondicionalidade dos benefícios e pelo protagonismo das prefeituras.
Cidades que criam programas locais de transferência de renda não são novidade. No Brasil, por exemplo, três programas pioneiros foram criados em 1995 por iniciativas locais e entre 1997 e 1998, outras 25 cidades implementaram seus próprios programas municipais. A entrada do governo federal nessas políticas públicas ocorreu apenas anos depois, em 2001, com o Bolsa Escola, ao qual se juntaram naquele ano quatro outros programas, cada um administrado por uma área administrativa diferente (Educação, Saúde, Energia e Assistência Social). Em 2003, o governo federal unificou esses quatro programas em um único, dando origem ao Bolsa Família, cuja gestão era centralizada e coordenada por uma única secretaria, o Ministério do Desenvolvimento Social.
Longe de ser apenas um fenômeno brasileiro, a municipalização dos programas de transferência de renda foi perceptível na última década, na maioria das vezes sob a denominação de Renda Básica Universal. Tais programas municipais se espalharam rápida e globalmente nos anos de 2020 e 2021 e começaram a agregar defensores nos chamados UBI Labs (Laboratórios de Renda Básica Universal) na Europa, EUA e Ásia. Cerca de três dezenas de localidades na Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte desenvolveram estudos para implantar programas de renda básica em 2021, enquanto mais de 90 cidades dos EUA estão listadas no site “Prefeitos para Renda Garantida”[i], utilizando em grande parte recursos do governo federal para operacionalização dos programas em nível municipal.
A velocidade de replicação desses programas municipais torna a investigação da transferência de renda sob gestão subnacional um tema muito relevante em todo o mundo. Em busca de evidências de suporte para esse tipo de política pública, um número significativo de estudos tem se concentrado na avaliação de programas piloto de renda básica usando estratégias de randomização. A avaliação desses pilotos, no entanto, tem sido em sua maioria inconclusiva, seja porque consideram uma amostra muito pequena ou um período de tempo muito restrito em suas análises. Essas avaliações também ignoraram muitas vezes o impacto da análise urbana de tais programas em relação aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas.
Um aspecto particular e inovador encontrado em algumas das recentes iniciativas municipais de transferência de renda é o uso de moedas locais. A ideia por trás do uso de moedas locais é fornecer um benefício que só possa ser gasto dentro de uma área geográfica restrita, a fim de impulsionar o desenvolvimento da economia local, maximizando as trocas econômicas em um dado ambiente urbano. O uso de moedas locais pode tornar as cidades e territórios mais resilientes e capazes de absorver os efeitos das crises. Os casos de Gyeonggi na Coreia do Sul, Barcelona na Espanha e várias experiências na França, Bélgica, Suíça e Canadá mostra que esse modelo tem sido aplicado em diferentes países e com diferentes características.
As moedas locais têm particular relevância para comunidades urbanas informais empobrecidas que vivem em condições de vulnerabilidade social, econômica e ambiental. Existem milhares de moedas complementares em todo o mundo e seu uso tem se expandido nos últimos dez anos, especialmente com a massificação do uso do celular nos pagamentos digitais. O formato digital de moedas locais sendo utilizado como instrumento estratégico para ampliar os programas de transferência de renda é um fenômeno de extrema importância no combate à pobreza e fortalecimento da economia local, entretanto ainda precisa a ser melhor quantificado com relação aos seus impactos para a sustentabilidade ambiental, para além dos impactos econômicos e sociais.
No Estado do Rio de Janeiro, Maricá, criou em 2013 sua renda básica com a moeda local mumbuca. Após o sucesso demonstrado por Maricá no enfrentamento da Covid-19, diversas outras cidades têm acompanhado a tendência de criar sua própria renda básica municipal. Em 2022, as cidades fluminenses de Niterói, com a moeda araribóia, Saquarema, com o saquá, Itaboraí, com a pedra bonita, Cabo Frio, com a itajuru, Iguaba Grande, com o caboclinho, e Porciúncula com a elefantina seguem o modelo, assim como a sergipana Indiaroba, com a moeda aratu. Importante mencionar que todas essas cidades aprovaram leis municipais para criar um fundo para alimentar a distribuição desses benefícios distribuídos tanto com cartões magnéticos quanto com aplicativos de celular. É de se esperar que mais cidades sigam essa tendência de expansão de programas de renda básica municipais, na busca de respostas emergenciais para cidadãos que enfrentam ameaças à sua renda, ao mesmo tempo que se investe na recuperação da economia local.
Diferente dos pilotos de renda básica que dominam os programas em países desenvolvidos, os casos brasileiros e provavelmente o mencionado caso da Coreia do Sul, são experimentos naturais que tem potencial de avaliação de impacto muito mais efetivo. Além de possuírem escala muito maior, são políticas públicas mais estáveis, representando modelos de renda básica municipal que adquirem maior confiabilidade por parte dos beneficiários.
Enquanto mais cidades e regiões buscam alternativas para combater a pobreza e fomentar a economia em seus territórios, a avaliação sistemática dos impactos desses programas que já estão em operação ainda precisam ser melhor estudadas. Embora haja uma percepção geral sobre o impacto positivo de tais programas, pouco foi quantificado sobre seus efeitos multiplicadores e fluxos nas economias locais, em particular nas suas implicações para o aumento das desigualdades intraurbanas no cenário pós-pandemia. Seus impactos ambientais no território, como as implicações para a produção e manuseio de lixo e para o desmatamento urbano, também foram ainda pouco estudados.
A crescente adoção desses programas de transferência de renda municipais é muito benvinda, mas é preciso ampliar os estudos sobre esses programas locais. Embora haja uma certa quantidade de estudos sobre seu impacto geral na saúde e no emprego, por exemplo, pouco se conhece sobre seus impactos nos indicadores de sustentabilidade, em particular nos relacionados com a questão ambiental. Considerando as desigualdades existentes nos territórios urbanos e diversidade dos pequenos negócios, não basta avaliar o impacto geral da renda básica no município como um todo, mas é preciso aprofundar no entendimento do que acontece nos seus diversos setores censitários e nas implicações para cada perfil de atividade de negócio existente no território.
Eduardo H. Diniz, Professor da FGV-EAESP e Pesquisador do Centro de Microfinanças e Inclusão Financeira