O Plano Nacional de Educação (PNE), instituído em 2014, estabeleceu algumas metas para a política educacional brasileira. Para a educação infantil, o documento definiu o objetivo de ter 50% das crianças de até três anos matriculadas em creches até o ano de 2024, além de todas as crianças de quatro e cinco anos na pré-escola até 2016. Dados de 2019 mostram que o acesso à educação infantil até registrou avanços, mas ainda não o suficiente. Naquele ano, por exemplo, as matrículas estavam em 37% para creches e 94,1% para a pré-escola.
Instrumentos como o Censo Escolar permitem acompanhar a evolução do acesso à educação por meio do número de matrículas e de outros dados estatísticos. Contudo, “garantir o acesso não é suficiente. É preciso promover a qualidade das interações e das oportunidades de aprendizagem dentro das escolas”. A fala é de Esmeralda Macana, especialista em monitoramento e avaliação do Itaú Social. Ela acompanhou a implementação do estudo Avaliação da Qualidade da Educação Infantil: um Retrato pós-BNCC, realizado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV), com apoio do Itaú Social.
“A educação infantil é muito importante. O desenvolvimento humano começa na infância, por meio de experiências, fundamentais para o amadurecimento do cérebro e para as habilidades socioemocionais. Elas se dão nas famílias e em outros espaços prioritários, como a creche e a escola”, explica Esmeralda. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada em 2017, propõe seis formas de propiciar à criança a aprendizagem e o desenvolvimento por meio das experiências: conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se.
“Contra fatos não há argumentos”
Apesar de precisar ser encarada com seriedade, a educação infantil tem na brincadeira um dos seus principais elementos pedagógicos. Na primeira infância, as crianças devem receber estímulos por meio da ludicidade. Algumas situações, entretanto, fizeram acender o sinal de alerta durante o estudo. Quatro em cada dez turmas não tiveram momentos de brincadeira livre, ou seja, oportunidades em que as crianças podem interagir de forma autônoma, apenas sendo supervisionadas por uma pessoa responsável.
“A escola precisa ser um espaço educativo e interessante para a criança, onde ela brinca, ri e se alegra. Não pode ser um lugar enfadonho, onde ela só fica pintando”, afirma a professora Maria Lúcia Garijo, responsável pela educação infantil em Suzano (SP). O município teve 185 turmas observadas para a pesquisa de avaliação da qualidade da educação infantil. A gestora celebrou a realização do estudo inédito, cujos achados já estão servindo de parâmetro para a tomada de decisões. “É bom ter esses dados porque contra fatos não há argumentos.”.
Maria Lúcia trabalha com a educação infantil há mais de quatro décadas. Mesmo com a experiência, a educadora sempre busca se atualizar, com leituras e formações, para aperfeiçoar a sua atuação. Segundo ela, as crianças mudaram muito entre a década de 1980 e os dias atuais, e a educação precisa acompanhar esse movimento para se manter interessante. Os momentos de brincadeira livre são fundamentais para a missão. “Explicamos para os professores que a brincadeira é livre, mas precisa ter intencionalidade. Não posso perder do meu radar o que quero desenvolver com aquela proposta, seja ela brincar no escorregador ou um jogo de memória”, resume.
Alguns municípios que participaram do diagnóstico admitiram que docentes dos anos iniciais do ensino fundamental eram “aproveitados” como professores da educação infantil. “Isso explica um pouco por que alguns professores não entendem a importância das brincadeiras livres e acham que elas não são pedagógicas. O diagnóstico também é importante por trazer referenciais que explicitam o que é importante para o desenvolvimento da criança”, defende Esmeralda, do Itaú Social.
Outras insuficiências geraram preocupação após a publicação da avaliação de qualidade. Por exemplo, em 55% das turmas não foram registrados momentos de leitura de livros de histórias, importantes para o desenvolvimento da consciência fonológica, da capacidade de imaginação e do interesse pela literatura. Em Suzano, a educadora Maria Lúcia entende que essas atividades são fundamentais também para o desenvolvimento do vocabulário e atribui a dificuldade de interpretação de texto das pessoas adultas à ausência desse incentivo na infância. No Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) de 2019, apenas metade dos brasileiros alcançou pelo menos o nível 2 na avaliação de interpretação da leitura, numa escala que vai de 1 a 6.
“A educação infantil é a etapa que tem processos avaliativos menos robustos, quando comparada com os ensinos fundamental e médio. Sem dados, não há como argumentar para intervir e melhorar a realidade”, diz Beatriz Abuchaim, gerente de conhecimento aplicado da FMCSV. Ela ressalta que esse é o maior estudo realizado até hoje sobre o tema. Foram observadas 3.467 turmas de creche e pré-escola de 12 municípios brasileiros, durante seis meses. Além de produzir um diagnóstico inédito sobre a qualidade da educação infantil ofertada no país, a pesquisa tinha como objetivo fomentar a cultura da avaliação para essa fase do ensino básico.
Para produzir uma análise qualitativa, a avaliação adaptou para a realidade brasileira instrumentos da metodologia internacional Measuring Early Learning and Quality Outcomes (MELQO). As secretarias de Educação de todos os municípios participantes, como Suzano, receberam devolutivas individuais para que pudessem pensar propostas de intervenção. “Não comparamos os municípios entre si porque esse não era o nosso objetivo. São realidades diferentes. Tudo isso serve de base para que tomem decisões políticas mais acertadas e pensem processos avaliativos em nível municipal.”
O diagnóstico resultou numa formação on-line para gestores sobre a avaliação da qualidade da educação infantil. Cerca de 70 municípios estão participando do curso, cuja realização é uma parceria entre Itaú Social, FMCSV e o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social (Lepes). Uma versão autoinstrucional da atividade está sendo desenvolvida e tem lançamento previsto para este ano. Outro legado foi o Observatório da Qualidade da Educação Infantil, plataforma que reúne os resultados do estudo e demais orientações sobre o tema.
Todo o processo de realização do diagnóstico foi desafiador. O contato com os municípios começou a ser feito em 2019, três anos antes da publicação. Logo depois, a pandemia fez com que os planos precisassem ser refeitos. Beatriz sempre se emociona ao se lembrar de tudo. “Foi um período desafiador, mas fiquei bem satisfeita com o resultado. Entregamos ao Brasil algo importante, que nunca tinha sido feito. Estive envolvida de corpo e alma por acreditar muito na potência desse projeto para qualificar a educação infantil do nosso país.”
Esmeralda é colombiana e mora no Brasil há 18 anos. Tempo suficiente para perceber que os gestores da educação no país, em geral, têm muita paixão pela profissão e vontade de fazer mais. Falta acesso à formação continuada, para que se mantenham atualizados, e a referências que ajudem a entender os contextos em que estão inseridos. Ela avalia que o diagnóstico teve boa recepção e deu visibilidade a algumas falhas já conhecidas, mas também a outras que não estavam em evidência, como a questão da leitura.
Otimista, a especialista em monitoramento e avaliação acredita que foi cumprida a missão de entregar uma ferramenta que apoia a identificação dos pontos frágeis. “Muitas das vulnerabilidades ocorrem porque não se promove o ciclo de fazer um diagnóstico, levantar evidências, escutar as necessidades da rede, montar um plano estratégico de ação e continuar monitorando esse ciclo. É preciso fazer uma gestão com base em evidências”, conclui.
Da Redação
Fonte: Rede Galápagos