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Licitação e desentendimento entre tribunais de contas

Crédito: Schierfler Advocacia

A diversidade de verbas gera diversidade de jurisdições de contas e a questão de qual jurisdição deve prevalecer

Formulado numa impugnação ao edital por uma respeitada empresa de coleta de lixo hospitalar originou o presente texto.

Dúvida é a seguinte: havendo uso parcial de verba federal e havendo divergência quanto aos posicionamentos do TCU e do TCE/SP qual posição deverá ser seguida pela administração pública? Obviamente, que a divergência de outros Tribunais de Contas estaduais e/ou municipais também se enquadra neste debate. A diversidade de verbas gera diversidade de jurisdições de Contas e a questão de qual jurisdição deve prevalecer. O hibridismo de verba gera hibridismo de interpretações.

O tema da vida real se refere à apresentação da licença de operação: deve ser apresentada na qualificação pois se trata de “condição sine qua non” de existência da empresa (TCE/SP, 17.10.2014, ALEXANDRE SARQUIS TC-00011499.989.24-2) ou na assinatura do contrato exigindo-se apenas do licitante vencedor? (TCU Acórdão 6.306/21 Relator: Ministro ANDRÉ DE CARVALHO: 20/04/2021).

Houver uso misto de verbas e utilização de verba Federal estaremos diante de um dilema. Diríamos que se trata de verdadeira “escolha de Sofia”1 sobre a preferência do município ser penalizado pelo TCE/SP ou pelo TCU. A hipótese se assemelha à mãe que escolhe qual filho deve ser morto num campo de concentração no filme estrelado por Meryl Streep.

Posicionamento pessoal é o mesmo do TCU, porém (como procurador), devemos seguir o posicionamento das Cortes de Contas para orientação do setor de licitações e não predileções pessoais.

Questão, porém, não se refere apenas à melhor hermenêutica mas ao respeito recíproco entre as Cortes de Conta e ao princípio federativo. Data venia, ainda que uma Corte de Contas tenha divergência com a hermenêutica de outra Corte deve, necessariamente, respeitar o posicionamento divergente, máxime quando há hibridismo de verbas públicas.

Há, em nosso sistema jurídico, hierarquia entre as Cortes de Contas e tal fato impõe o dever de respeito mútuo sem qualquer preponderância.

Escolha discricionária pelo ente político

Havendo alguma pecúnia Federal a ser utilizada o município/Estado pode optar por uma das linhas jurisprudenciais em consonância com o princípio da autonomia federativa.

Conclusão distinta desta possibilidade de escolha feriria de morte o princípio federativo e o princípio da segurança jurídica. Não há hierarquia entre as Cortes de Contas e, portanto, ambas as hermenêuticas são igualmente válidas.

Em sua obra “Teoria Pura do Direito”, no capítulo VIII sobre a interpretação menciona a “moldura” a ser preenchida pelo órgão julgador. Não havendo hierarquia entre Cortes de Contas, o único órgão julgador que resta é o próprio ente público que utiliza as verbas. Algum órgão público deverá escolher a hermenêutica mais adequada.

O art. 60, §4º, I da CF/88 prevê como cláusula pétrea a emenda tendente a abolir o Estado Democrático de Direito e mais especificamente à forma federativa de Estado. 

É evidente que a vedação às emendas inclui normas de menor estatura normativa, inclusive os atos corriqueiros da Administração Pública que criem “tendência” à abolição da forma federativa de Estado, o que inclui a sua absoluta inviabilidade de gestão de seus negócios por sanções inexoráveis. Isso configuraria uma “intervenção homeopática” nas entranhas dos contratos administrativos.

A vedação de escolha pelo ente público acarretaria, na prática, a sua inércia administrativa e a inviabilização de seu funcionamento.

Inobstante o respeito que merecem as Cortes de Contas, estas instituições não podem impor “escolhas de Sofia” aos entes políticos tampouco intervenções homeopáticas nos contratos administrativos.

Optar por quem será sancionado equivale a decretar a morte de qualquer autonomia do ente político. Seria a institucionalização da espada de Dâmocles2 “presa ao teto por um único fio de crina de cavalo.”

Seria, em síntese, a decretação de uma modalidade não prevista de “intervenção parcial” e ingerência nos negócios federativos ao arrepio do princípio federativo.

Respeito recíproco entre cortes de contas

O tema da divergência entre Cortes de Contas já foi objeto de texto3 no caso em que ocorra “carona” em registros de preços entre entes políticos de jurisdições de contas distintas. Nessa hipótese concluímos que “… pode, perfeitamente, prevalecer a jurisdição da Corte de Contas do “caronista” ainda que divergente da Corte de Contas do detentor da ata, pois a carona não elimina a atividade fiscalizatória do Tribunal do caronista desde que observados os princípios do ato jurídico perfeito e da autonomia dos entes políticos.”

O tema aqui é distinto são: duas jurisdições a serem respeitadas de forma concomitante e estas jurisdições divergem entre si.

Os operadores do Direito que atuam junto às Cortes de Contas já conhecem o entendimento sobre defesas formuladas com base em jurisprudência de Corte de Contas distinta daquela na qual a defesa é apresentada.

Decisões no sentido de que a decisão mencionada “não vincula” e que apenas precedentes da própria Corte de Contas servirão de parâmetro para a decisão.

Na hipótese debatida, porém, deve haver respeito a decisões divergentes e incompatíveis que são igualmente respeitáveis. Não é possível que uma Corte de Contas decida que sua hermenêutica seria superior a outra.

Caso, a única solução possível é que as Cortes de Contas respeitem reciprocamente seus precedentes e aceitem a escolha discricionária do ente político, único órgão público que restou para decidir no caso concreto.

Conclusão

Hibridismo de verbas públicas e divergência entre Cortes de Contas, a única forma de resolução do hibridismo de jurisdições é a escolha discricionária pelo ente público em homenagem à cláusula pétrea do princípio federativo, vedação à intervenção “homeopática” e respeito recíproco entre as Cortes de Contas.

Fonte: Mgalhas

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