Os desafios das novas gestões e a nova visão sobre o controle da administração pública pós-pandemia

Dia 1º de janeiro, aproximadamente de 5.475 novos prefeitos e milhares de vereadores tomaram posse para quatro anos de mandato, enquanto que outros quase 100 aguardam ainda a palavra final da Justiça Eleitoral, período em que, até que haja uma decisão, assumiram a gestão municipal, em caráter transitório, os presidentes das Câmaras Municipais.

Como se sabe, vivemos numa democracia participativa, onde a vontade popular é representada através de mandatários eleitos para período determinado de exercício de dois importantes Poderes estatais: Executivo e Legislativo, que, juntamente com o Poder Judiciário, funcionam em perfeita harmonia, num sistema de freios e contrapesos (checks and balances).

Tal conceito é trazido de modo expresso pela Constituição Federal, em seu artigo 2º, quando afirma que: “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, sendo atribuídas funções (típicas e atípicas) a cada um deles, sendo ao Poder Legislativo, em qualquer das esferas, atribuída a função típica normativa, enquanto que ao Poder Executivo, a função típica administrativa.

Assim, no Brasil temos três círculos de poder e uma divisão descentralizada do Estado, estando o Município como um dos mais importantes entes, o qual possui o poder, por simetria, de auto-organização, autogoverno e autoadministração, ou seja, possui autonomia local e residual para criar sua norma constitutiva, legislar sobre interesses locais, podendo organizar seu governo, escolher seus dirigentes, bem como organizar seus próprios serviços.

Nesse contexto, a influência das realidades cotidianas sobre o direito, a política e a administração pública, assim como a reflexa via de interferência destes sobre a realidade popular, em suas diversas formas, é tema por demais relevante para o debate atual, ganhando ênfase, o impacto da pandemia do covid-19 sobre o orçamento dos Municípios brasileiros e as expectativas para execução adequada das políticas públicas necessárias ao atendimento da população nesse e nos próximos anos.

Faz-se então necessário um debate intenso sobre o efetivo enfrentamento à pandemia, com uma agenda de atendimento das demandas sociais, dentro do contexto ainda de avanço da doença e de reconstrução econômica pós-pandemia, onde o foco central será, em primeiro grau, a restruturação da saúde pública, seguido de perto pelo atendimento emergencial às demandas de economia, planejamento e educação, visando recompor o atraso imposto pelo ano de 2020.

O Brasil, como se sabe, é gerido por um formato de gestão pública extremamente burocrática e dispendiosa, resultado do sistema tradicional racional-burocrático, o que se deve ao caráter positivista da Administração Pública, enraizado em nosso ordenamento, por certo, ultrapassado, que nos leva a aderir, hodiernamente, como já feito pelos nossos Tribunais de Contas, ao modelo de análise da eficiência da gestão pública, com foco na efetividade das políticas públicas e ao cumprimento do interesse público primário.

Tradicionalmente, o modelo de Administração Pública vigente, em especial quando da análise das despesas, atos e contratos administrativos, fundamenta-se no princípio da estrita legalidade, considerada a diretriz básica da conduta dos agentes públicos, ou seja, necessariamente autorizada por lei e regida por esta, em toda sua extensão, sob pena de se caracterizar em flagrante ilegalidade.

Isso se deve ao fato de que, a Constituição da República de 1988 traz como pressuposto que todos os entes da Administração devem obediência estrita ao princípio da legalidade (art. 37, caput), porém, por preceitos constitucionais, devem, da mesma forma, pautar toda sua atuação em valores fundamentais outros, tão ou mais importante, decorrentes de um Estado Democrático de Direito, conforme constante do artigo 1º, incisos II e III, quais sejam: a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

Com esse novo modelo de Administração Pública, a busca pela eficiência e a efetividade na prestação de serviço passa a ser o fundamento da administração gerencial, que deve estar voltada para o cidadão-cliente, deixando o controle da Administração de ser formal para um controle de resultados, com uma revisão nos sistemas, separando o que é excessivo e desnecessário do que de fato traz transparência e garante a impessoalidade.

Com o impacto causado aos Municípios pelo Novo Coronavírus, em especial os menores, verdadeiro rombo orçamentário foi deixado para os próximos anos, em muitos deles, menos por má-gestão, mais por falta de previsão orçamentária que cobrisse fato tão imprevisível, o que demandou tantos gastos com suprimentos e instrumentos suficientes ao enfrentamento da doença e ao atendimento emergencial da população impactada, que vai exigir grande esforço dos novos gestores e uma sensibilidade ainda maior dos órgãos de controle, em especial dos Tribunais de Contas e do Ministério Público.

Ocorre que, há, diante desse cenário, uma preocupação relevante desses órgãos, para além da obrigatoriedade de respeito às normas de caráter administrativo, que estão resguardadas pela lei de improbidade, mas, em especial, ao controle dos excessos e desvios nos gastos realizados em 2020 pelas gestões municipais, preservando-se, por consequência, os princípios da economicidade, eficiência e impessoalidade, ainda mais no contexto de um ano eleitoral.

É fato que o Estado Democrático de Direito, que significa a exigência de regência por normas democráticas, exigindo-se o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais, fundamenta-se no conceito de exercício da cidadania, reconhecido como a livre e isenta escolha popular dos destinos da Nação, direito político fundamental, exercitado por todos e por cada um individualmente, não pode ser corrompido ou viciado¹, ainda mais nesse momento de extrema fragilidade.

Nesse cenário, por certo que o controle externo da atuação dos gestores públicos, neste e nos próximos anos, no enfretamento à Covid-19, e na retomada pós-pandemia, excetuado os casos de desvios e excessos ilícitos, exigirá uma sensível análise,em especial pelos Tribunais de Contas, da real efetividade do atendimento das demandas públicas da população, em contraposição ao sistema tradicional positivista de controle, cujo foco será o resultado efetivamente atingido na realização dos serviços públicos, em especial àqueles relacionados ao atendimento de saúde, educação, assistência social, economia local e saneamento básico.

Assim, a gestão pública pós-pandemia deverá ser integrada e proativa, visando o melhor equacionamento dos recursos públicos e uma maior economicidade, descartando-se os interesses privados e eleitoreiros, com vias ao melhor resultado no enfrentamento das demandas sociais emergenciais e urgentes, que deverá ser controlado por indicadores finalísticos com base em índices de efetividade, sem deixar, no entanto, de observar parâmetros de legalidade, o que poderá (e deverá) ser flexibilizado em alguns casos, em respeito aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

E o tema aqui levantado não é inédito, uma vez que os Tribunais de Contas já adotam uma avaliação com base em índice de efetividade, em especial o TCE-SP, que adota, desde 2015, o Índice de Efetividade da Gestão Municipal – IEGM, que se dispõe a avaliar a qualidade dos investimentos e gastos públicos pelos gestores paulistas, modelo que entendemos capaz de suprir as dificuldades dos demais Tribunais de Contas do país (naqueles que ainda não conseguiram aplicar tais procedimentos²) na implantação da avaliação de desempenho da gestão pública, trazida pela Reforma Constitucional da Administração Pública.

E dentro desse cenário de calamidade pública decretada nacionalmente, em que os gestores possuem autorização para a realização de despesas com maior flexibilidade burocrática, bem como diante de um cenário caótico de reconstrução, resguardadas questões de evidente desvirtuamento, “o índice de efetividade […] permitirá observar quais são os meios utilizados pelos municípios jurisdicionados no exercício de suas atividades […], nas quantidades e qualidades adequadas e ao melhor preço (economia), de modo a entender a melhor relação entre os meios utilizados e os resultados obtidos (eficiência), visando ao alcance dos objetivos específicos fixados no planejamento público (eficácia).”

Desse modo, com base na modernização do sistema na busca da efetividade da prestação do serviço público, com vias ao atendimento no enfrentamento e retomada pós-pandemia, desde já desejando sorte aos novos gestores, vemos como necessário um controle externo pautado na eficiência da gestão pública, instrumento que se torna realmente eficaz na realização de justiça social e de respeito às normas constitucionais e legais vigentes, deixando deser um controle meramente formal e legalista, permitindo uma flexibilização no atendimento às demandas urgentes e necessárias, garantindo uma gestão de resultados, impessoal, ética e transparente, com maior margem para escolha das políticas a serem implementadas, punindo, por outro lado, com ainda maior rigor atuações que não sejam voltadas ao interesse público, que é o fim único da Administração Pública.

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¹ ROCHA, Carmem Lúcia Antunes. República e Federação no Brasil: traços constitucionais da organização política brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. apud COSTA, Adriano Soares da. Instituições de direito eleitoral. 9. ed. rev. ampl. e atualizada de acordo com a LC nº 135. Belo Horizonte: Fórum, 2013. p. 35-36.

² Em 2015 já em aplicação nos Tribunais de Contas de Pernambuco e da Bahia.

³ TCESP. Manual do Índice de Efetividade da Gestão Municipal do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo – 2014. Disponível em: <https://www4.tce.sp.gov.br/sites/default/files/manual-iegm-tcesp_0.pdf>. Acesso em 12 abr. 2017.

Amilton Augusto

Advogado especialista em Direito Eleitoral e Administrativo. Vice-Presidente da Comissão de Relacionamento com o Poder Legislativo da OAB/SP. Membro julgador do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RJ. Membro fundador da ABRADEP – Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (2015). Membro fundador e Diretor Jurídico do Instituto Política Viva. Membro do Conselho Consultivo das Escolas SESI e SENAI (CIESP/FIESP). Autor da obra Guia Simplificado Eleições 2020 (CD.G, 2020). Coautor da obra Dicionário Simplificado de Direito Municipal e Eleitoral (Impetus, 2020).  Palestrante e consultor.

Marco Vinholi

Administrador e Comunicador. Foi Deputado Estadual em São Paulo pelo PSDB e Líder do Partido na Assembleia Legislativa do Estado. É atual Secretário de Desenvolvimento Regional do Estado de São Paulo e Presidente Estadual do PSDB-SP.

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