Emergência habitacional no maior centro urbano do Brasil

Com o atual ritmo de urbanização, o Relatório Mundial das Cidades 2022, da ONU-Habitat, estima que até 2050, 68% da população mundial será urbana. Essa realidade coloca as cidades diante de um complexo desafio: criar espaços sustentáveis e igualitários que atendam a demanda crescente de pessoas. Considerada um direito fundamental, a moradia digna ainda não está assegurada a todos os cidadãos no Brasil, o que acarreta ocupação de áreas de risco e crescimento urbano desordenado.

Em São Paulo, maior cidade da América Latina, o déficit é de 369 mil domicílios, de acordo com o Plano Municipal de Habitação (PMH). Além disso, o último Censo da População em Situação de Rua aponta que há quase 32 mil pessoas desabrigadas na capital. Este cenário de emergência habitacional nos convoca à reflexão e ação, pois serão necessárias transformações profundas para avançar em direção a um futuro de equidade e cidadania, alterando a paisagem atual.

Gestão pública comprometida, desenvolvimento científico e tecnológico para soluções inovadoras e o envolvimento da sociedade são alguns dos ingredientes essenciais para que as cidades se tornem mais humanizadas. A resolução de problemas deve passar por quem os vivencia, e a tecnologia, utilizada como ferramenta de suporte às necessidades sociais. Com isso em vista, já temos os mecanismos legais, técnicos e científicos para promover tais mudanças.

O Plano Diretor Estratégico de São Paulo (Lei nº 16.050/2014), por exemplo, estabeleceu uma série de objetivos que visam conter o processo de expansão horizontal da aglomeração urbana para preservar o cinturão verde metropolitano; acomodar o crescimento da cidade em áreas subutilizadas dotadas de infraestrutura e no entorno da rede de transporte coletivo; reduzir a necessidade de deslocamento para equilibrar a relação entre os locais de emprego e de moradia; e implementar uma política fundiária que garanta o acesso à terra para as funções sociais do município.

No aspecto técnico, as diversas profissões da Engenharia e do Urbanismo consolidam possibilidades inteligentes para recuperar espaços urbanos e devolvê-los ao uso público, caso do retrofit, processo de adequação de prédios que respeita suas características originais. Inclusive, essa será a fórmula seguida pela primeira entrega do programa Pode Entrar (Lei nº 17.368/21), que impulsiona a construção de empreendimentos habitacionais de interesse social, a requalificação de imóveis urbanos e a aquisição de unidades para famílias de baixa renda da capital.

Como vitrine desse projeto, está o Edifício Prestes Maia, no bairro da Luz, centro de São Paulo, que, antes de se tornar a maior favela vertical da América Latina, abrigava uma loja de tecidos em meados de 1950. Agora, em 2022, o prédio passará por uma reforma para se transformar em um condomínio com 287 unidades habitacionais que acomodarão as 60 famílias que, atualmente, vivem na ocupação. Serão necessárias adaptações técnicas para cumprir as normas e legislações vigentes, desde a parte hidráulica e elétrica à instalação de elevadores e construção de paredes. Medidas como essa impactam diretamente a comunidade e seu entorno, além de cumprir um papel importante ao revitalizar a paisagem do centro, historicamente atrelada a um estado de degradação.

Estudos de monitoramento do LabCidades, da Universidade de São Paulo (USP), sinalizam que o crescimento do número de incêndios e de ocupações colocam em risco a segurança da sociedade que mora, trabalha e transita pela região central. Em 2018, no Largo do Paissandu, o prédio Wilton Paes de Andrade, de 24 andares, desabou após um incêndio. Uma tragédia que afetou as mais de 150 famílias que moravam em uma ocupação no local e terminou com sete mortos e dois desaparecidos. Neste mês, parte da região da Rua 25 de Março precisou ser interditada devido ao incêndio que atingiu um antigo prédio de habitação convertido irregularmente para uso comercial. Há ainda risco de desabamento. Ocorrências que se repetem e colocam em risco a segurança de toda a sociedade.

Com infraestrutura privilegiada, como transporte e equipamentos públicos variados, o centro paulistano conta com alta circulação de pessoas e movimenta comércio, serviços, turismo e cultura. É por isso que a resolução do déficit habitacional deve estar atrelada à necessidade de equilibrar a relação entre trabalho e moradia, especialmente nos grandes centros urbanos. São Paulo pode se tornar um reflexo do País sobre o enfrentamento às adversidades e a adoção de soluções eficazes com apoio tecnológico, científico e popular, se decidir revolucionar seu principal cartão postal.

*Lígia Marta Mackey, engenheira civil, é vice-presidente no exercício da presidência do Crea-SP

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